segunda-feira, fevereiro 26

Fuga Numa Ginja Tinta

Demasiadas, sei eu hoje que foram, as cenas em que me entreguei aos bebericares solitários nocturnos. Numa repetição mecanizada de levantar pousar o copo e esvaziar a garrafa pousada na mesa das minhas lamentações, perdi a noção do cerne da questão que edificava o meu estado de dilaceração. Nunca foi sede nem vontade de beber. Sempre foi vontade de esquecer. Compreendo hoje tudo isto por ver meu corpo impresso contra o beco da fuga. Não existem mais saídas, perdi a imaginação e o vinho também se acabou. Que seja arrebatada pelo que sentir não quis outrora e que compensei com as inebriações provocadas pelo tinto desejo de tragar a doçura da vida. Enchi-me de ginja até sentir a boca adocicada e a ressaca amarguíssima de uma dor trespassante pelas têmporas devido a esses excessos. Excedi-me, de facto, na procura pelo esquecimento e sequiosa todas as manhãs seguintes acordei até que hoje não há mais água para me acalmar a boca. Bem-vindo ao final da fuga.
Chora no aconchego do meu corpo a tua magoa de não o saberes amar melhor

Abre os olhos, acredita que sei o quanto é difícil faze-lo nos momentos em que o sol se põe ao alto sobre nós e a ofuscação torna-se insuportável para a vista. Abarca essa luz como bênção clarificante das ideias que agora te surgem ao enxergares a realidade que sofregamente tentaste enegrecer até ao ponto escuro do esquecimento. É dia das vistas com rigor de medida em que tudo é o que aparenta ser à partida. São tão reais essas lágrimas como a minha presença ao teu lado a limpa-las da tua face. A dor que te inflijo ao auxiliar-te na escavação da verdade também é verdadeira. Desculpa se não consigo minorar o teu sofrimento nesse teu processo de cura emocional atrasado no tempo das vivências. Talvez se te tivesses permitido sentir antes hoje tal não te parecesse tão difícil. Todas as palavras que me afluem à boca são pedaços de um gume afiado pelas frases que me disseste ao longo do tempo. Não me consigo impedir de proferir as verdades num dia em que a madrugada deu à luz a mesma realidade. Para mim tudo é o que sempre foi, sou igual a ontem, mas tu hoje, és mais que um corpo limitado a uma actuação vazia sem fundamento, és carne que padece quando a mente se entristece.
Por muito que o pesar te humidifique a cara, não há como voltar atrás. Num laivo de egoísmo almejei não te compreender. Quis te tirar o direito à expressão, todavia, não me cabe a mim nem por direito nem por vontade faze-lo. Chora que essas tuas lágrimas são fruto do desconhecimento, falta de treino e da inexistência de uma couraça interior que te proteja das emoções que se geram no teu âmago. Nunca aprendeste a lidar contigo mesmo e tudo o que sabes fazer é negar na perspectiva do tentar esquecer. Passas pelas coisas sem te tornas parte integrante das mesmas, o teu passado é rico em imagens mas pobre em vivências, pelo que, não é errado assumir que te falta demasiado para cresceres. Chora no aconchego do meu corpo a tua magoa de não o saberes amar melhor.

quarta-feira, fevereiro 21

Silêncio (In)Tranquilizante

Fustigo, com a carga das minhas palavras, o teu corpo que repousa inerte a meu lado. Permaneces quieto apenas com uma expressão inigualável estampada no rosto, que penso denotar o quanto te sentiste acarinhado pela emoção que as minhas frases comportavam. Com o quedar das palavras a minha alma despe-se totalmente deixando-me, assim, à mercê de um silêncio emergente que me atrapalha os raciocínios. Expôs-me ao teu já previsto emudecer, expressando na mesma as emoções que me condenam à prisão dos meus sentidos falíveis que te percepcionam tão acertadamente perto, mas que no entanto, não são capazes de ouvir o que pensas. Ao silêncio alia-se esse olhar desconcertante cujo fundamento desconheço, que acresce à minha falta de à vontade inquietação. Responde à minha nudez com mais que esse olhar que julgo, podendo estar enganada, tratar-se de um anuir ao que proferi. E quando estou prestes a perder a paciência e a quebrar o silêncio beijas-me com um gesto dissipador de todas as minhas dúvidas e inseguranças. Nesse instante encontraste próximo ao tacto e a distância que entre nós existe mede-se pelo desejo de próximos estarmos. Arrepio-me e sorrio dada à pressão da necessidade de expressar o meu intimo de forma simples e facilmente percebida por ambos. Na verdade, mesmo que quisesses fazê-lo de outra maneira, não conseguiria. Abarco o silêncio, como se este não passasse de uma atmosfera saturada por tudo o que do findar das palavras ficou suspenso no ar. O silêncio fala-me de nós.

terça-feira, fevereiro 20

Pesar, Mais Que Lágrimas

Derramei a essência das minhas vontades voláteis em poucas das combinações possíveis das palavras em frases, e agora que as releio julgo que as palavras são escassas no que toca à explicitação dos sentidos da carne. Coloquei mais de mim em todas as frases do passado do que nas situações a que estas se referem; fui mais papel do que gente que teoricamente sente o que o vive, diz o sente, sorri e não mente. Omitindo-me, fui me, progressivamente, afogando nas pilhas de memórias que à minha volta construí, alimentando-me de um papel incapacitante que me desnutriu. Enveredei por meios de viver que apregoavam facilidades e uma felicidade que não necessitava do esforço do trabalho para subir na vida a pulso. Sucumbi a uma ilusão auto infligida que desenhava um quotidiano à imagem dos meus desejos recalcados pelo peso de uma realidade difícil de suportar, que vi abatida sobre a minha estrutura óssea frágil desorientando-me a minha já perdida mente. Cai nos clichés de sonhar acordada com uma vida que na realidade se afigurava tão diferente. O importante acabou não proferido e guardado no aconchego do papel perdido. Os sentimentos presentes nessas folhas antigas revoltaram-se ,por fim, fustigando os meus sentidos que hoje sentem de novo e relembram-me que ser-se de carne é sinonimo de ser-se vivo.